Compartilhamos abaixo, trechos do texto da educadora e pesquisadora da infância Ana Lúcia Machado:
DEVOLVAM O TEMPO DO BRINCAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Será que não estamos adoecendo as crianças com nossa pressa? Será que o aumento dos distúrbios infantis, não estão diretamente ligados ao tempo insuficiente do brincar? Será que não estamos tolhendo as crianças de gastar suas energias brincando e exercitando a imaginação?
Analisando o cenário atual da Educação Infantil, a sociedade faz um apelo: devolvam o tempo do brincar na Educação Infantil.
Faço parte de uma geração que passou os
primeiros anos de vida brincando em casa, na escola, na rua, com amigos da
vizinhança, com primos, cuidando da minha cachorrinha, ouvindo histórias
contadas pelos mais velhos, andando de bicicleta pelo bairro, e assim
descobrindo e explorando o mundo.
Na pré-escola , até os 7 anos,
aprendi muitas canções e histórias, desenhei, pintei, recortei, colei, pulei
corda, brinquei de roda, amarelinha, casinha, médico, professora, etc… Aprendi
a dividir com os amiguinhos, jogar de acordo com as regras, pedir desculpas
quando necessário, cuidar das plantinhas, guardar e arrumar o que tirasse do
lugar, não mexer no que não fosse meu.
Há uma grande diferença entre a minha
vida na pré-escola e a vida das crianças nos dias de hoje. Os anos
pré-escolares se transformaram em uma competição acadêmica exaustiva. A
Educação Infantil ficou muito parecida com o Ensino Fundamental, por causa da
ênfase na alfabetização.
POR QUE TANTA PRESSA EM ALFABETIZAR AS CRIANÇAS?
Crianças de 4, 5 anos, ainda ávidas por
correr, pular, girar, são requisitadas para atividades cognitivas que exigem um
corpo estático e destreza em habilidades ainda em desenvolvimento na criança,
como a coordenação motora fina. Raquel Franzim, assessora pedagógica do Instituto Alana, fala que “A
criança aprende o mundo com todo seu corpo, não apenas com os dedos de
uma mão”.
Autoridades escolares diminuíram o
intervalo do recreio, do tempo do brincar,
para criar espaço para mais conteúdo curricular. Em algumas escolas as crianças
não podem mais correr. Com isso os consultórios de psicologia estão cada dia
mais cheio de crianças com problemas de falta de concentração, ansiedade, e
vários transtornos.
Em 2007, o Conselho de Pesquisa
Econômico e Social da Inglaterra publicou um documento que contou com a
participação de dezessete especialistas de diversas universidades europeias
interessados na discussão entre a neurociência e a educação, que diz o
seguinte:
“Contrariando a crença popular, não existem evidências neurocientíficas que justifiquem começar a educação formal o quanto antes. A plasticidade do cérebro é um fenômeno que dura a vida inteira, não somente nos primeiros anos.”
AFINAL, O QUE É A ALFABETIZAÇÃO?
Paulo Freire sempre advertiu que
alfabetizar é antes de mais nada conscientizar. Ele falava da conscientização
do “mundo vida”, onde a criança vive, onde ela se encontra e o que a rodeia.
Dizia que primeiro a criança lê o mundo para depois ler as letras”.
Em outras palavras é o que fala também
a jornalista especialista em neurociências e neuropsicologia Michelle Müller: “Antes de
generalizar o aprendizado das palavras ou apressar a alfabetização, é preciso
ter em mente que a leitura de mundo dos pequenos acontece de muitas maneiras.
Um bebê, por exemplo, lê com o corpo, com os ouvidos, com as mãos, a partir da
exploração tátil, sonora e visual das coisas.
O psicolinguista colombiano Evelio Cabrejo Parra, explica que “o bebê, ao nascer, já vem com a capacidade de escutar. Quando se lê para ele em voz alta ou se canta uma canção de ninar, ele se põe em posição de escuta. Isso quer dizer que ele está tratando de construir significado à sua maneira”. Parra defende que desenvolvemos a linguagem desde bebês, e vê a ‘alfabetização’ como um processo sutil anterior à fala e à escrita, que tem início por meio da escuta.
A experiência dos finlandeses, que não começam uma instrução formal
de leitura antes de 7 anos de idade, revela que “a base para o início da
alfabetização é que as crianças tenham atenção e ouçam … que elas tenham falado
e conversado, que as pessoas tenham discutido [coisas] com elas … Que elas
tenham feito perguntas e recebido respostas”.
Beatriz Gayotto, pedagoga pelo Instituto Singularidades, e professora de Ensino Fundamental do Estado de São Paulo, adverti que “o enfoque do trabalho da Educação Infantil deve ser a socialização da criança, o desenvolvimento das habilidades de ouvir, de se expressar e de negociar. A Educação Infantil deve aumentar os horizontes culturais das crianças, resgatar as canções, histórias e brincadeiras que elas conheceram em casa e ampliar seu repertório com o dos colegas e com aquele que a professora apresenta, tanto da cultura regional como da mundial”.
FATORES QUE FAVORECEM O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
§ Habilidades motoras e domínio espacial, adquirido na exercitação do correr, saltar, rodar, equilibrar-se em troncos de árvores, perna de pau, trepa-trepa, etc…
§ Interação social, conquistado pelas brincadeiras e jogos em grupos, em casa e na escola
§ Expressão oral, saber dialogar, contar uma história, facilitado por repertório de canções, histórias, versos, parlendas, aprendidos em casa, na escola
§ Escuta, exercitado por ouvir histórias em casa, na escola
§ Registros de ideias e vivências artísticas por meio de desenhos, pinturas e colagens
§ Saber contar os números, exercitado nas brincadeiras de esconde-esconde, pular corda, nas compras com a família, na cozinha com os pais no preparo de receitas culinárias, etc…
§ Autonomia no cuidado pessoal e de seus pertences
§ Internalização de rotina e ritmo
Na contra mão da aceleração…
Especialistas afirmam que o aprendizado
formal é mais produtivo a partir dos 6 anos de idade, pois é quando
as crianças são mais capazes de lidar com ideias abstratas. Afirmam também que crianças
que chegam à escola socialmente adaptadas, que sabem seguir instruções,
compartilhar, ajudar os amigos, terão mais chance de dominar a escrita, a
leitura, e os números.
Um dos grandes aliados da criança na
primeira infância, como força de aprendizagem, é o tempo do brincar livre. Entretanto, infelizmente
na sociedade contemporânea o tempo do brincar livre
está em declínio, as novas gerações estão sendo privadas deste tempo e
espaço de brincar. Especialistas na área de educação e saúde vêm alertando
sobre a diminuição do tempo de brincar das
crianças e seus prejuízos. Por isso o apelo “Devolvam o tempo do brincar na
Educação Infantil”.
Brincar é substrato para a vida,
é o motor da infância que garante a potência para a vida adulta.
Brincando a criança desenvolve competências que serão requisitadas
mais tarde nas relações interpessoais e de trabalho. Brincar é uma
atividade instintiva, natural e espontânea da criança. Ele é essencial para o
desenvolvimento infantil integral e saudável, e segue tendo sua importância ao
longo da vida adulta, porque afinal somos seres lúdicos.
Será que não estamos adoecendo as crianças com nossa pressa? Será que o aumento dos distúrbios infantis, não estão diretamente ligados ao tempo insuficiente do brincar? Será que não estamos tolhendo as crianças de gastar suas energias brincando e exercitando a imaginação?
DEVOLVAM
O TEMPO DO BRINCAR NA EDUCAÇÃO INFANTIL
O brincar tem origem na curiosidade e
necessidade de exploração da criança para construção do seu próprio mundo, sua
identidade, a imagem de si e a compreensão do mundo que a cerca.
Ele ensina tudo o que os pequenos precisam aprender sobre a dinâmica
interna e estrutura do seu próprio corpo. Quando brinca a criança está inteira
na brincadeira, pois brinca com todo o seu ser. Brincando ela experimenta o
estado de flow, e assim desenvolve a capacidade de concentração, necessária
para o processo de alfabetização.
É preciso questionar o sistema e defender o direito das crianças viverem a infância como deve ser, respeitando as etapas de seu desenvolvimento. Tudo a seu tempo.
Ana Lúcia Machado